Eu o vi no meio da multidão, mas
não o reconheci de imediato. Era o mesmo, mas era outro. Não era aquele que me
olhou outrora com olhos ternos. Cabelos esvoaçantes, olheiras que não tinha
antes, barba a esconder parte do seu sorriso encantador. Quem é esse que me
abraça de um jeito assustado e retraído? Quem é esse, de onde ele tem saído?
Será que foi de uma lembrança? De um sonho? De um devaneio afinal? Quem é esse
que se apresenta como se fosse amigo de longa data? Quem é esse cujo meu
coração desata? Não, não é aquele a quem um dia entreguei meu amor... Quem é
afinal, explica-me, por favor?
Aproximo-me sem reservas. Peço
que ele sente-se perto de mim. A dúvida termina enfim. Há uma doçura em seu
olhar, mas ela se oculta por puro medo. Esses olhos já viveram em desespero.
Esses olhos vagam sem sair do lugar. Há uma escuridão dentro deles e, ao mesmo
tempo, eles me devolvem a luz. Esses olhos que outrora me conduziram à beira da
praia. Esses olhos que junto dos lábios davam altas risadas. Antes diziam
tanto; hoje não dizem nada.
Contaste-me todos os teus segredos;
ouvi com muita atenção. Houve um momento em que segurei bem leve a tua mão, mas
você se afastou por reserva ou por choque do meu calor. As suas mãos frias
esqueceram-se do nosso amor. Elas não param de mexer nessa barba estranha que
me assusta e me afasta. Elas não param de anunciar que um plano diabólico pode
estar sendo tramado em seu pensamento. Essas mãos calejadas ultrapassaram as
barreiras do tempo.
Então, depois desse toque do meu
verão com o teu inverno. Meu corpo sai e caminha de volta àqueles tempos. Seus
olhos calmos, serenos, cabelos encobrindo o rosto, a voz pausada, a poesia...
Aquele tempo em que eu o via quando a luz do dia desaparecia. Aquele tempo em
que caminhávamos enquanto muitos dormiam. Aquele tempo em que tu me sorrias
enquanto eu dormia de olhos abertos. Eu era tão espontânea, tu me disseste uma
vez, enquanto a chuva molhava nossos cabelos sem pedir permissão. Tu me olhavas
e me ensinava a direção. Meu coração era teu e era meu teu coração.
Retorno e encontro um Outro
sentado na minha frente. Ele tem teus olhos, teu sorriso, teu corpo, tuas
palavras, mas ele não é aquele que eu amei. Ele é Outro; ele fala de hábitos novos;
ele não me toca. Esse estranho não sabe o quanto chorei por ti; ele me olha com
medo e diz que eu não sou feliz. Ele me olha com reservas e me manda voar além.
Ele fala de Deus e de tantos outros. Fala sobre tudo e não me revela nada. Ele
chora e por dentro parece dar risada.
Volto outra vez para o som do
violão. Vinho nos lábios, areia nos pés, um tronco de coqueiro embaixo de nós.
Parecia um banco tão romanticamente providenciado. Eu rodopiava, você sorria.
Eu dançava, você me seguia.
Olhamos ambos para a mesma
direção. Nosso corpo palpitava. Parecia que o mundo observava nossa felicidade.
Eu podia ouvir as batidas do teu coração. Eu estremeci quanto teus lábios
vieram de encontro aos meus. Eu me entreguei quando você sugou minha verdade.
Nosso beijo era o mar que leva os pescadores para bem distante. Nosso beijo era
o sol radiante. Nosso beijo era o brilho da estrela a iluminar o céu. Nosso
beijo foi o momento que eu quis pausar. Nosso beijo foi sublime demais para duas
almas atormentadas.
Lembro-me do gosto de vinho, da
fumaça do cigarro, do violão, do inebriante sabor. Nunca mais senti essa gloriosa
sensação. Agora estou aqui na tua frente e não te reconheço. Digo que és o
mesmo, mas não és. Será que agora fui eu quem perdeu a fé?
Caminhas pela cidade, entra em
prédios antigos e se confunde com toda essa história. Nosso amor se perdeu nessa
poeira que tanto te fascina. A saudade de tudo o que não volta é o que te
alucina. O desejo de reviver é que te tornou tão diferente. Eu não sou presa,
mas não sou livre, sou consciente. Antes, tu me levavas para longe e me
permitia sonhar. Agora eu não te encontro mais. Esse não é aquele. Aquele já
não me satisfaz.
Volto e ouço uma indagação
curiosa: Será que sou louca ou sou apenas mais uma rosa? Será que sou comum ou
será que possuo algo de diferente. O passado confunde a gente. O passado chega
de repente. Ele nos rouba as lembranças e as leva para longe. O presente é
perigoso. Viver é complexo, é desumano. Eu não quero olhar para Esse que já não
me reconhece. Quero aquele beijo que minha mente nunca esquece. Quero encontrar
aquilo que nunca imaginei. Eu tenho medo de ter perdido tudo o que eu nem sabia
que tinha.
Estranho, eu também quero ser
Deus. Eu quero ter o poder de te trazer de volta para mim. Quero nossas noites
de voz no silêncio da escuridão. Quero caminhar contigo com medo de perder a
direção. Quero teus olhos ternos. Quero tua voz e teu sorriso. Quero tudo o que
Esse não me oferece. Eu quero o precipício.
Convida-me para teu mundo, mas
não espera que eu vá te seguir. O mundo ficou vazio sem você aqui. A vida já
não é vida. A saudade já não me deixa sorrir. Eu quero o canto das sereias.
Quero afundar naquele beijo. Quero esquecer tudo e reviver; esse seria meu
último desejo.
Luciana Braga