Desde cedo, deixei claro para ele que eu
só conseguiria ter bichinhos de pelúcia. Sempre que fechava os olhos, enxergava
os dois homens com farda azul entrando casa a dentro sem nenhuma cortesia e os
adultos não se dando o trabalho de me explicar que ela não tinha mais salvação.
Puxaram-na pela coleira contra a vontade dela e minha. Eu não tinha forças para
vencer aquele cabo de guerra. Afinal, a guerra mesmo já havia sido traçada
entre a Princesa e o mal que carrega sem piedade todos os cãezinhos para o céu.
Durante a madrugada, às vezes, eu ouvia o
as unhas grandes dela arranhando o chão. Eu via os olhos dela me pedindo
atenção e sentia o corpo o magro dela em contato com o meu, na época, também
tão franzino.
Acostumei-se a dizer que tinha alergia e
fingia altos espirros quando me aproximava de algum cão. Tinha medo de me
apegar de novo e me deparar com os homens de azul. Agora eu já era adulta,
forte e fazia musculação, mas será que eu conseguiria segurá-la sozinha com
minhas duas mãos? Será que eu seria capaz de protegê-la de todos os corpos
estranhos do mundo? Bem lá no fundo, entendi que o melhor era evitar amar de
novo e proteger o coração que não suportava despedidas. Minha mãe entendeu e
não permitiu que nenhum cãozinho atravessasse o nosso portão até aquele dia em
que ela se justificou dizendo que o tempo não destrói amor verdadeiro, não
sepulta o que continua vivo em nós, mas faz a gente mudar de ideia.
O nome dela era Mel. Doce até no nome, foi
o que eu disse quando a vi. Mas ela não era nenhum pouco doce, pelo menos não
depois dos dois primeiros segundos. Ela gostava de morder tudo a sua volta e o
osso predileto era o do meu calcanhar. Eu disse: “Mãe, leva a Mel daqui, eu não
quero me apegar!” Não queria sofrer tudo de novo. Meu coração já havia sido
dividido, pelo menos, duas vezes. Duvido muito que ele bata tanto quanto o
coração de quem nunca perdeu ninguém.
Mas sem perceber, fui me afeiçoando aos
olhos doces dela, ao cheiro suave do pelo limpo e à patinha pequena que cabia
na minha mão. Ria vendo ela correndo pela casa toda doida, feito flecha que
acerta sem aviso o coração da gente. Só que ninguém me avisou que de repente,
um raio pode sim cair mais de uma vez na frente dos nossos olhos.
Tudo aconteceu numa manhã silenciosa, em
que o celular vibrou e coloquei no ouvido com os olhos ainda fechados. Ouvi a
voz chorosa da minha mãe dizendo que a Mel estava toda suja de fezes e vômito e
ela não sabia o que tinha acontecido, porque no dia anterior, ela tinha corrido
tanto que tinha se cansado e ido dormir cedo.
Levei-a a um veterinário. Paguei uma
pequena fortuna e saí de lá com a certeza de que iriam cuidar dela melhor do
que eu seria capaz. Não cuidaram! Ou, pelo menos, não conseguiram. O quadro não
se reverteu. Um corpo estranho se entrometeu dentro dela e ela foi definhando
em menos de 24 horas. Mudei de clínica. Paguei o dobro. Chorei horrores. “ Do
que adianta?” Veterinário estuda tanto, né, mas no final, conhecimento não
concentra todo o poder do universo.
Decidi pela cremação e a cor do saco de
plástico em que a colocaram era azul, igual a farda dos homens, igual os olhos
da cachorrinha da minha irmã que tinha nos deixado no ano passado, da mesma cor
das minhas unhas que eu ia cravando no braço pra ver se doía na pele mais do
que na alma. É que se o sangue escorresse, eu sentiria um pouco do que ela
estava sentindo enquanto me olhava com seus olhos fixos. Olhos de quem quer
enxergar o mundo pela última vez.
Levei a caixinha com as cinzas e, lembrei-me
da Princesa sem velório, enquanto jogava as cinzas que eram levadas pelo vento
e se perdiam nas ondas do mar. Oceano é azul, eu sei bem, mas, dessa vez, não
senti que era a cor mais triste. Eu senti que a onda me lavava por dentro e por
fora. Mergulhei com roupas mesmo e senti o toque do pelo da Mel no meu rosto
enquanto a gente dormia, mergulhei de novo e vi o sorriso dela na espuma fria,
mergulhei outra vez e a Princesa me advertiu que amar é isso. É um caminhar sem
rumo, é um clichê absolutamente necessário, é apegar-se de uma hora pra outra,
é um doar-se inteira em mil cuidados. Amar é mergulhar com medo e voltar para a
areia com a confirmação de que a homenagem verdadeira não é feita com cinzas,
nem enterros, mas é aquela que fazemos sempre que lembramos durante o breve
instante em que a onda apressadamente volta para o mar.
Luciana Braga