4.20.2020
Nós nos encontramos pela primeira
vez numa sala de professores de uma escola de bairro. Um armário de madeira
ocupando toda a parede lateral com o nome dos supostos donos em cada porta denunciava
a personalidade de cada indivíduo que deveria se aglomerar naquele espaço nos
próximos trinta minutos em torno da grande mesa que parecia engolir a sala com
sua toalha de um azul que faz a gente refletir sobre a delicadeza do tom que
envolve o céu.
Ele chegou atrasado,
penteando rapidamente o cabelo com os dedos, ajeitando o óculos de grau que
marcava seu nariz milimetricamente calculado e posto ao centro daquele rosto
branco de lábios rosados e rachados na parte inferior. Cumprimentou-me com o
olhar e se sentou. Ficou mexendo no celular como quem busca uma mensagem
inesperada, mas era fácil perceber que não havia nada, mesmo assim suas mãos não
paravam, acompanhando o ritmo descontrolado dos pés que dançavam contra o chão.
Finalmente, a moça entrou
na sala em que esperávamos para sermos entrevistados para a vaga de professor
de Arte e Educação. Explicou que antes de falar conosco, a coordenadora queria
que escrevêssemos um texto sobre o papel das artes no mundo globalizado. Deixou
folhas no centro da grande mesa e indicou um porta-canetas repleto de canetas
pretas e saiu.
Finalmente ele resolveu
me olhar (Ainda não havia feito, embora eu estivesse sentada bem a sua frente)
e disse “Método estranho, gente esquisita. Você tá mesmo precisando de emprego?”
Eu sorri e disse que ainda estava terminando a faculdade e queria juntar uma
grana para viajar e fazer um curso em Paris. Ele pegou a caneta e me disse que
eu tinha excelentes fins, mas precisava rever melhor os meios.
Eu comecei a escrever sem
parar como se estivesse sendo dominada pelo espírito dos grandes artistas da
História da Arte. Citava Van Gogh, quando ele me interrompeu “Eu não acredito
que não consigo escrever nada!” “Que tipo de professor eu serei se não consigo
dizer pra que serve o que eu ensino? “Vai ver não serve pra nada” (provoquei). “É
isso! Você é brilhante! A arte não serve para nada, com finalidade basta a
existência das Ciências, da Medicina, da Engenharia. Defenderei ardentemente
esse ponto de vista, obrigado!”
Graças a minha facilidade
de escrita, pude terminar meu tempo bem antes e assim me sobraram alguns instantes
para observar meu excêntrico companheiro de escrita. Enquanto ele escrevia de
cabeça baixa, o cabelo liso caía insistentemente sobre o rosto e ele jogava
para trás com gestos repetidos e incansáveis. De tempos em tempos, ele levantava
o olhar, eu fingia que continuava relendo o meu texto a muito tempo repousando
no papel e sorria sem graça ou com medo de ser pegue em flagrante desenhando o
rosto daquele estranho mentalmente.
A moça retornou, pegou nossos
escritos, chamou-me primeiramente para ir à sala da diretora e ele me desejou
sorte. A entrevista seguiu como esperado com perguntas óbvias e relacionadas à
didática. Eu só pensava nos cabelos dele caindo insistentemente sobre o rosto. Saí
da sala confiante, procurei-o com o olhar, a moça estranhou. Ele havia ido
embora.
Saí da escola chateada, pois
sequer tinha tido oportunidade de perguntar o seu nome. Ao dobrar a esquina
para me dirigir ao ponto do ônibus, enxergo de longe os sapatos inquietos dançando
no calçamento. Ao notar minha presença, ele se levantou e perguntou se eu
queria ir a um café. Eu perguntei se ele tinha percebido que havia perdido a
entrevista e ele disse que assim eu tinha mais chances de chegar à Paris. Sorrimos
juntos.
“Como você sabia que eu
vinha para o ponto de ônibus? Não tenho cara de quem possui carro?” “ Não é
isso, eu simplesmente coloquei uma ideia à prova.” “Como assim, colocou uma
ideia à prova?” “Havia cinquenta por cento de chance de eu te ver aqui e
cinquenta por cento de chance de não te ver jamais.” “E não poderia ter
esperado ao lado do portão?” “Eu não queria que me vissem” “Tudo bem.” Seguimos
até a cafeteria e pedimos chocolate quente (Nenhum dos dois tomava café na
realidade). Conversamos por duas horas seguidas. Eu nunca havia me sentido tão
livre ao lado de alguém que eu mal conhecia, mas ao final, nenhum nome foi
dito, nenhum telefone trocado. Ele gostava de colocar tudo à prova. Disse que se
estivesse no nosso destino, a gente se veria novamente por acaso e então saberíamos
com certeza que estávamos destinados a viver um grande amor. Tentei argumentar
que essa ideia parecia um roteiro ruim de um filme que eu havia visto no sábado
passado, mas ele possuía uma certeza no olhar que impossibilitava conter o
sorriso e aceitar a proposta. Despedimos um do outro com um beijo no rosto.
As horas viraram meses,
os meses virariam anos, mas antes de completar um ano do encontro após a entrevista
do emprego que havia rendido economias suficientes para uma viagem de poucos
meses à Paris, eu retornei a mesma cafeteria e de longe o avistei sentado no
canto mais reservado do lugar com um livro aberto, celular ao lado e olhar distante.
Eu me sentei bem a sua frente sem dizer nada. A garçonete se aproximou com duas
canecas de chocolate quente e colocou sob a mesa sorridente, dizendo “O de sempre”
e ele repetiu “O de sempre.”. Eu prontamente me levantei e me desculpei por
minha ignorância, pois não sabia que ele estava esperando alguém. Ele disse
apenas: “Não se preocupe, ela já chegou.” Eu olhei ao lado procurando alguém e
não via mais ninguém além da garçonete. Tornei a olhá-lo e ele me disse: Havia
cinquenta por cento de chances dela retornar a esse lugar e finalmente ela
retornou.
Luciana Braga