5.17.2021

O MESMO FONE DE OUVIDOS





Ela chegou oito horas em ponto. Estava calçada com um all star de cano alto encardido e cheio de desenhos de cactos, vestia uma calça jeans com rasgos no joelho e uma camiseta indiana. Em qualquer pessoa essa mistura louca poderia confundir os olhos, mas nela ficava simplesmente adorável. Esse visual rebelde contratava com seus cabelos cacheados caindo suavemente sobre os ombros largos. De todo esse conjunto que eu observava rapidamente pela janela do meu quarto enquanto ela subia as escadas, o que mais ressaltava e fazia meu coração acelerar de repente era o seu sorriso torto. Havia algo entre o fechar de olhos e as covinhas que se formavam em seu rosto que certamente deixavam a minha capacidade de raciocínio mais lenta. Tudo isso eu observava enquanto minha amiga caminhava animada em direção ao meu quarto.

Nós nos conhecemos na faculdade no início do ano e quem diria, sete meses é tempo suficiente para alguém se apaixonar. Só havia um problema. Eu era hétero. Ou pelo menos era a informação que circulava entre os parentes próximos e os mais afastados. Já havia tido três namoros considerados promissores, o último inclusive deixou minha mãe muito decepcionada gritando na minha cara que eu era um ser humano incapaz de amar.

Agora estava eu completamente apaixonada por Laura sem poder dizer palavra.

Ela me abraçou como de costume, falou sem parar por dez minutos seguidos, como de costume também, ficou descalça, sentou na minha cama, pegou o fone de ouvido e me chamou para junto dela para ouvir The Smiths. A Laura era divertida, confiante e lésbica. Bem lésbica, ela fazia questão de destacar com entonação de orgulho. Eu achava que nunca sequer tivesse visto um armário para sair, pois já nascera livre, mas ela me contara certa vez enquanto tomávamos vinho na praia que tinha namorado um rapaz por um ano para receber um abraço orgulhoso do pai. Como obviamente o relacionamento não deu certo, o pai se afastou. Assim, ela também decidiu se afastar da ideia de fingir ser quem ela não era. Aos vinte e dois anos, ela dividia um apartamento com dois amigos, mas agora que eles decidiram engatar um relacionamento, ela passava a maior parte do tempo aqui, o que causava pânico na minha mãe que achava que ela trazia maconha na mochila e iria desvirtuar a filhinha dela.

Desvirtuada eu ficava quando encostava a cabeça no ombro dela e dividia o mesmo fone de ouvido. Eu conseguia ouvir tudo, a análise pausada, os suspiros ao desvendar uma nota musical, mas nada se comparava ao perfume que emanava de seus cabelos. Eu me prendia aquele cheiro e se eu me sentia presa é porque de fato eu não conseguia fugir. Fantasiava que iria girar o pescoço devagar e iria me deparar com os olhos castanhos dela de encontro aos meus azuis de medo. Ela umedeceria os lábios, tocaria minha face e suas mãos estariam frias e suadas, mas eu não me incomodaria, presa ao seu sorriso torto, presa ao meu desejo louco, unidas em um único beijo que não precisaria chegar ao fim. Até que ela risse e me dissesse: Por que você está tremendo?

Não era medo, era encontro, era libertação, ter meu mundo inteiro ali ao alcance de minhas mãos e ter que se afastar ofendida porque não está preparada para sair. O armário é grande demais, suas portas são de madeira muito pesadas e eu não sei como destrancá-las. Observo meu desejo de longe. Eu me toco, eu penso nela, eu me provoco, eu viajo em devaneios e paro antes de gozar. Eu não consigo me libertar. O jeito é continuar sentindo o cheiro doce dos cabelos dela enquanto ela pega um pincel verde e desenha mais um cacto naquele sujo all star.

 

Luciana Braga


Conto pertencente à Antologia Pelo Direito de Amar, organizado por Jojo Campos e publicada  pela editora Ao Vento Editorial em 2021.

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