Meu isolamento começou terça
passada quando retornei da clínica com pontos dentro da minha boca após uma
complexa cirurgia de siso. Durante esses dias sem poder sair de casa, sem poder
mastigar, fazer atividade física e dormir deitada, eu refleti muito sobre o que
realmente é importante na minha vida. Recebi apoio de alguns amigos mesmo
distantes, porque quem me conhece sabe que não aceito visita estando doente. Eu
tenho uma personalidade estranha. Apenas, respeitem. Agora que minha cirurgia
está quase inteiramente cicatrizada, que eu posso mastigar e retornar aos
poucos para minhas atividades, eu não posso sair de casa.
No entanto, não é a limitação de
ir e vir que me apavora. É a consciência do privilégio que eu tenho de poder
ficar em casa lendo, desenhando, escrevendo, ouvindo música e a segurança de
que no início do próximo mês meu salário estará na conta. Enquanto isso,
observo o silêncio das ruas e penso na minha mãe e nas minhas irmãs que são
costureiras (ninguém compra roupa numa crise dessas), no meu namorado e na
minha cunhada que não foram dispensados dos seus trabalhos (porque os
supermercados não podem fechar!), nas minhas amigas donas de salão de beleza
(Quem vai se arrumar pra ficar em casa?), nas minhas professoras de dança se
desdobrando para criar conteúdo online, assim como meu instrutor de yoga e meu
orientador de mestrado.
Penso também em quem eu não
conheço, mas sei que necessita de gente na rua para vender suas mercadorias,
penso nas alunas que trabalham em lojinhas, nos alunos que fazem bicos para
ajudar os pais, nas diaristas e babás que se arriscam cuidando dos filhos dos
ricos que estão retornando para o Brasil. Eu penso nos mendigos sem gente na
rua para pedir ajuda pra comer. Penso nos rapazes que trabalham no ifood, nas
prostitutas, nas crianças que estão nascendo assustadas e nas crianças que
estão morrendo sem ter consciência do que viveram.
Eu comecei falando de mim, mas
agora estou olhando para a minha janela e vendo o quanto esse mundo é grande,
assim como o egoísmo de quem estocou álcool em gel e comida como se tivesse em
tempos de guerra. Sim, estamos em tempos de guerra. Não contra o corona vírus,
esse cruel soldado que ataca com crueldade, adoece os fortes e mata os mais
fracos. Estamos em guerra contra o egocentrismo e a vaidade que está destruindo
a humanidade pouco a pouco.
Acostumamos a olhar nosso reflexo
na câmera do celular e tirar várias selfs para escolher aquela que melhor
esconde nossos defeitos. Enquanto isso, há um mundo a nossa volta e nosso
celular não capta porque está voltado para nós mesmos. Se queremos sobreviver a
essa guerra, temos que retirar o modo self e pensar em todos os outros. Eu
preciso do outro para me enxergar como ser humano criado a imagem de Deus. Não foi
isso que aprenderam? Se somos a imagem do que é perfeito, porque agimos com
tanto individualismo? Até onde eu sei, Jesus era um pacifista, um idealizador. Ele
dividiria o álcool em gel, o pão e as palavras. Não estamos vivendo segundo o
modelo dEle, estamos vivendo conforme nossa vontade. Enquanto isso, os idosos
estão chorando se sentindo ainda mais sozinhos e continuamos olhando para o
nosso frio reflexo na tela opaca do celular.
Luciana Braga